quarta-feira, janeiro 31, 2018

Uninvited luv



"A força de um coração". Parece título de novela da globo, daquelas que passam no horário da tarde, ou às dezoito horas, bem chinfrinzinha mesmo.

Assim é como me sinto com meu coração. Ele não para de bater. Mais um clichê pra compor com a história clichê desse coração.

Parece que é só isso que ele sabe fazer. Ser clichê.

Eu poderia transformar esse texto em palavras bonitas, trocar o coração pela ideia de amor, invocá-lo intransitivo, tornando-o mais sublime e transcendente, mas estaria apenas escondendo por debaixo das belas palavras a força desproporcional desse coração.

Ele anda por aí, vendo em cada janela uma oportunidade, em cada olhar uma indagação, em cada conversa do what's app uma continuidade, em cada foto de Instagram uma desilusão, em cada e-mail recebido, uma saudade.

Esse insuportável ser que me domina. Que eu também domino e controlo, às vezes, nesse jogo entre dominante e dominado. Exaustivo, sem gastar um músculo sequer na ginástica do amor. Vergonhosa, essa linha, e o que ele sente, me dão vergonha alheia.

Palavras chulas, assim como esse coração sem eira, nem beira, em busca e à espera do impossível.

À espera da realização de todos aqueles malditos sonhos netunianos que caíram na casa quatro de um mapa astral com vocação de ser pura razão. De escolher na razão, de amar na razão, de selecionar pela razão.

Com tanta razão, porque foi atirado nesse coração?

Ah, jogo do destino! Sinto os deuses que montaram o desenho da vida solar dessa ser humana se moerem em gargalhos.

Não é tarefa fácil morar dentro desse coração. O quanto me vence pelo cansaço. Quando vejo, lá estou eu de novo construindo castelos que nunca se erguerão, desenhando conversas que não acontecerão e momentos que não se concretizarão.

Os gregos separavam seus poemas e contos épicos, em Tragédias ou Comédias.

Deixo para o campo do cômico falar sobre esse insistente ser sem desconfiômetro. Até porque meu cronograma trágico foi encerrado faz alguns meses. Saiu de férias. Trabalhou demais nos últimos dois anos. Foi tirar um sabático e espero que não volte mais. Se perca em uma ilha do oceano pacífico e por lá viva feliz com águas de côco e muito sol.

Como acabar um texto tão descarado e verdadeiramente vergonhoso como quem conta a história de um coração com DDA?

Quero que ele passe por embaraços tão grandes, que acabem pelo humor fazendo-o atinar para o tamanho de seu deslocamento.

(termino, com a certeza de que talvez tenha sido a coisa mais piegas que coloquei em palavras online na vida).

Assim, ó coração! Que eu exorcize essa intensidade vertiginosa a me acompanhar sem ter sido chamada e, quem sabe, do embaraço dessas linhas você parta e encontre para lá uma outra morada.

Imagem: Michelle Kaufman (2017)

terça-feira, janeiro 09, 2018

As novas amizades de Flora


Flora tem um novo amigo. Ela achava antes que aos quarenta já teria encontrado todos os seus grandes amigos, mas está aprendendo agora que tem muito mais gente por ai para conhecer. Ela ainda está tentando entendê-lo. Flora percebeu que não teria tido condições de tê-lo conhecido antes. Não teria entendido nada. Ele é um pouco difícil, mas ela tem percebido que esse amigo veio para mudar radicalmente a forma como ela esteve no mundo até então. Ele é meio duro, mas ao mesmo tempo tem ajudado Flora a fazer o que ela percebeu ser o mais difícil em si: a separar o mundo da fantasia do mundo da realidade.

Bem, o amigo de Flora tem nome, claro. Ele se chama Solidão

Solidão veio para ensinar Flora a dar conta do papel que a Fantasia tem em sua vida. Flora sempre foi bastante concreta e realista, mas quando ela tinha que lidar com a Fantasia ela normalmente fazia isso com mais gente, à dois, por exemplo. Ela sempre chamava outras pessoas para estar com ela nessas horas.

Projetando, imaginando, idealizando, misturando a Fantasia principalmente às relações de amor que ela iria construir. Quando ela realmente se envolvia, até para ajudar a dar conta de um excesso de Razão (meio que um irmão gêmeo de Flora), ela se perdia um pouco na Fantasia

Flora tem achado difícil perceber que chegou aos quarenta e há camadas profundas que mostraram a ela o quanto ainda há para se conhecer... Por exemplo, sobre quanto tempo ela demorou para descobrir o nome de duas de suas amigas mais antigas. Uma delas é a Procrastinação, mas o apelido dela é Preguiça. Flora descobriu que a Preguiça é a irmã mais nova da Fantasia. E como ela descobriu isso? Bem, foi um pouco pela lógica.

Flora também é irmã mais velha. Assim, ela sabe que o papel dos irmãos mais velhos é sempre acabar à frente, cobrindo o terreno e escondendo o rastro da irmã mais nova, para que ela não pareça a responsável por nada de ruim, ou, para que ela passe despercebida. Foi assim que ela descobriu que Fantasia e Preguiça eram irmãs. Fantasia não faz por mal, é coisa de irmã mais velha mesmo.

Mas a Preguiça, Flora pensa, "até ai tudo bem". O problema é que a Preguiça tem uma prima que Flora particularmente detesta. E como elas normalmente chegam juntas na casa da Flora, ela tem que suportá-la. Essa prima se chama Desconcentração. Flora realmente detesta ela. Ela incomoda, atrapalha. Porque Flora tem muitas coisas legais para fazer todos os dias e quase não suporta ter que  "fazer sala" para a Desconcentração.

Por isso, Flora está grata por ter ficado amiga de Solidão. Porque por mais que a Fantasia tente, com toda a sua leveza e beleza, esconder as outras duas, fica claro que tem mais gente na sala. Solidão faz  Flora ver claramente todas essas amizades antigas. 

Flora tem esse outro amigo antigo, também, de quem ela gosta muito. Ele se chama Silêncio. Os pais de Flora nunca gostaram dele. Eles acham o Silêncio chato e sem graça e sempre se incomodaram quando Flora e ele estavam juntos. Mas Flora ama o Silêncio porque ela soube desde cedo que quando ele chega, mesmo em sua transparência e sutileza, ele se faz notar. Ele traz paz e tranquilidade. Ao mesmo tempo em que é forte, é sutil. Flora ama a mistura dessas coisas todas que o Silêncio é. Conforme ela foi crescendo e quando ela deixou de morar com seus pais, a relação de amizade entre ela e o Silêncio só se fortaleceu.

Solidão foi meio apresentada à Flora pelo Silêncio. Solidão é bem amigo dele e Flora acha que, assim como o Silêncio, quando ele chega, faz tudo ficar muito vivo e real, principalmente, o que não queria ser visto ou notado. 

Bem, a Fantasia, seguida pela Preguiça e pela Desconcentração vieram para ficar, Flora sabe. O que ela fará com estas três ainda está descobrindo, experimentando. A cada dia que passa, a cada visita que Flora recebe de Solidão, do Silêncio, ela vai entendendo melhor como lidar com essas amizade antigas. 

Tem uma outra amizade, que deixamos para o final, mas que talvez seja a mais importante de todas as que Flora teve até agora. Essa amizade apareceu de uma forma despretensiosa, faz alguns poucos anos, na vida de Flora. Na época, Flora sabia que ela era importante, mas não havia se dado conta de que essa amiga seria, possivelmente, a chave para todas as outras formas e pessoas com as quais Flora irá conviver nos seus próximos - possivelmente também - quarenta anos.

Essa amiga se chama Presença

A Presença É. Simples assim. A Presença veio para mostrar a Flora o poder do desapego, de viver o agora, de verdade. De permanecer sendo, do ser e do devir, ao mesmo tempo. É muito difícil para Flora estar com ela. Flora se sente até meio constrangida de tanto que a Presença é mais sábia, experiente e iluminada do que ela. Flora sente coisas estranhas, se sente pequena perto dela, meio insignificante mesmo, como se fosse precisar de uma eternidade para estar à altura do que a Presença é ou tem para oferecer com essa amizade. 

Flora entendeu que ela é um passo além, até do Silêncio e de Solidão, ela é a resposta para todas as formas de estar e ser. 

Flora tem trazido a Presença para a sua vida. Não é uma aproximação simples e fluida, é construção, é dia a dia. Ela apresentou a Presença à Fantasia, por exemplo. Está fazendo as duas ficarem amigas. Fantasia, que sempre foi a mais querida e antiga amiga de Flora, de infância mesmo, dessas que quando a gente é criada juntas a gente nunca esquece, está gostando. 

Com Presença, Fantasia não tenta proteger a irmã mais nova, que por sua vez não vem mais acompanhada da chata da prima. Preguiça e Desconcentração simplesmente tem que sair de cena, porque Presença faz com que as duas percam total sentido ali na história. 

Já FantasiaPresença ajudam Flora a fazer o que ela mais gosta: criar, produzir e deixar poético, iluminado, encantador, novo e alegre, o que ela está fazendo, seja o que for. Onde quer que ela passe, Flora gosta de fazer as coisas que faz, sentindo isso tudo. Ela acha que, independente do que ela faz, se sentir assim, entusiasmada ("enquanto faz"), é o que há de melhor. E quando ela une as duas e, ao mesmo tempo, encontra Solidão, ela percebe que não precisa de mais nenhum outro pra se sentir completa, iluminada, feliz. 

Flora adora estar com Fantasia neste fazer. É por ela que Flora pensa essas linhas. Com a parceria entre Fantasia e Presença é que Flora tem tentado sonhar com um mundo melhor, tem meditado, tentado orar, trabalhar, amar e acordar todos os dias acreditando. 

Flora está grata. Solidão e Presença chegaram, meio aos quarenta, "mas talvez fosse a hora mesmo", pensa.

Essas linhas findam. Presença se despede da Fantasia porque Flora e ela tem outras coisas para fazer.

Mais tarde elas se encontram novamente para um chá com música. 

Imagem: Jean-Honoré Fragonard, 1767